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Para não esquecer (A história de um pai ex-ccb)

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Mensagem por Admin Qui maio 26, 2011 3:59 pm



“Deus proverá” era a frase do meu pai. A frase é de Abraão, na verdade. Quando Javé pediu a ele que sacrificasse Isaque, seu único filho, Abraão nem piscou: acordou Isaque, disse que ia oferecer um sacrifício e os dois saíram de casa. No meio do caminho, meio desconfiado, Isaque perguntou onde estava o bicho que iam sacrificar. “Yahweh-yireh” foi a resposta de Abraão — Deus proverá. Yahweh-yireh é um dos nomes do Deus de Israel. Era esse o Deus do meu pai — não importava o quão difícil fosse a situação, não importava o beco sem saída em que a gente se metesse: o Deus dele sempre ia dar um jeito. E ele nem precisou ameaçar sacrificar um de nós.

Quando precisava correr, meu pai corria com a mão sobre o peito, para impedir que os documentos e o pente pulassem do bolso da camisa. É uma imagem recorrente nas minhas memórias mais antigas: meu pai correndo de mão no peito.

“O que que a gente faz agora, pai?”, eu perguntei quando minha avó materna morreu. “Eu não sei”, foi a resposta dele. Foi a primeira, talvez a única vez em que eu vi meu pai tão triste a ponto de não ter uma palavra de conforto para nós. Foi das poucas vezes em que o vi chorar, também.

Meu pai nunca teve um time. O engraçado é que ele gostava muito de futebol. Quando foi para a Congregação Cristã do Brasil, ele parou de ver televisão. Mas sempre que tinha um jogo passando ele parava um pouco na sala, comentava um lance qualquer, saía. Aos poucos essas paradas pra ver jogo foram aumentando: ele se sentava no braço do sofá para ver uma cobrança de falta, depois começou a ver replays, um tempo aqui, outro ali. Dizia que era ponta direita — “dos bons!” — do time da fazenda onde cresceu lá na Bahia. Eu acredito: depois da história do capoeirista, eu nunca mais ousei duvidar de nada que ele me dissesse.

Eu sempre tive insônia. Ficava na sala de madrugada vendo qualquer bosta na televisão. Lá pelas tantas, ouvia os passos do meu pai vindo do quarto. Ele entrava na sala de braços cruzados, meio encolhido de frio. “Dormir, Marco. Olha a hora.” “Já vou, pai.” Ele voltava para o quarto, eu ouvia os passos dele se afastando.

Meus irmãos nunca tiveram insônia. Dormiam no carro vindo da casa da minha avó, dormiam no sofá. Meu pai carregava eles pra cama. Lembro dele carregando minha irmã no colo quando ela tinha uns 12, 13 anos de idade, e quase o tamanho dele. Eu sentia um pouco de inveja: queria ter sono pro meu pai me carregar até a cama. Nunca tive.

Por volta dos 60 anos de idade, meu pai começou a usar óculos para leitura. Botava aqueles oclinhos pra ler a Bíblia. Quando estou na casa da minha mãe, entro no quarto dela e espero encontrá-lo sentado na cama de Bíblia no colo, encostado em um travesseiro apoiado na cabeceira, olhando pra mim por cima dos oclinhos.

Quando a gente era pequeno, meus pais compraram cobertores novos para mim e minha irmã (meu irmão nem era nascido, eu acho). Compraram e disseram que só iam dar os cobertores quando a gente se comportasse direitinho. Um dia eu combinei com a minha irmã de pedir a bênção aos dois antes de dormir. “Bença, mãe. Bença, pai.” Os dois se olharam, sorriram e nos entregaram os cobertores. Foi uma alegria imensa; alegria besta de criança. Fiquei com meu cobertor a vida inteira, trouxe ele comigo quando casei. Dia desses um cara tocou campainha aqui. Estava dormindo na rua com a esposa e um filhinho, queria saber se eu não tinha um cobertor. Dei meu cobertor a ele. É o que meu pai faria. Mas foi triste.

Meu pai caiu em muitos golpes, foi muito explorado por acreditar nas pessoas. E continuou acreditando. Inabalável.

Quando ia orar em voz alta na igreja, meu pai sempre começava a oração com “Santo Deus, Eterno Pai Celestial”. Depois de muitos anos, mudou para “Santo Deus, Eterno Pai Celeste”. Eu sempre quis perguntar o porquê da mudança; nunca perguntei. Achava mais bonita a métrica da primeira abertura.

Depois que meu pai saiu da igreja Batista, eu continuei. O pastor que me batizou, Obede, me contou uma história tempos depois. Havia um grupo formado por pessoas mais velhas da igreja que estavam descontentes com o pastor. Esse grupo andava se reunindo ora na casa de um, ora na casa de outro. Um dia foram se reunir na casa de um de meus tios e chamaram meu pai pra participar. Ele chegou, viu aquele pessoal lá, perguntou de que se tratava. “É sobre a igreja.” “E cadê o pastor?” “O pastor é parte do assunto.” “Então esperem aí que eu vou buscá-lo” (meu pai falava assim mesmo, “buscá-lo”). Ele foi até a casa do pastor, disse que havia uma reunião acontecendo e o levou até lá. Meu pai não suportava trairagem. Detalhe: de todos, ele devia ser o que mais discordava do pastor. Mas preferia falar isso na cara dele.

Ele sabia que não tinha nenhum controle sobre a própria vida. Quando alguém o convidava para qualquer coisa, por mais banal que fosse, a resposta do meu pai era sempre a mesma: “Se Deus preparar, estarei lá”. Quando fazia planos, terminava as frases com “mas Deus é quem sabe de todas as coisas”.

* * *

Desde que meu pai morreu, meu maior medo é esquecer de como ele era. Coisas assim me ajudam a lembrar.


Marco Aurélio Gois dos Santos -

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