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A luta das vontades (Agostinho)
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A luta das vontades (Agostinho)
O inimigo dominava meu querer, e dele forjava uma corrente com a qual me mantinha cativo. Da vontade perversa nasce a paixão, e desta satisfeita procede o hábito, e do hábito não contrariado provém a necessidade, e com estes anéis enlaçados entre si – por isso lhes chamei corrente – me mantinha preso em dura servidão. A nova vontade, que despontava em mim, de te servir sem interesse, de me alegrar em ti, ó meu Deus, única alegria verdadeira, ainda não era capaz de vencer a vontade antiga e inveterada. Deste modo minhas duas vontades, a velha e a nova, a carnal e a espiritual, lutavam entre si e, nessa luta, dilaceravam-me a alma.
Entendi, por experiência própria, o que havia lido: a carne tem desejos contra o espírito, e o espírito contra a carne. Eu vivia ao mesmo tempo a ambos, embora mais o que aprovava em mim do que o que em mim desaprovava. Com efeito, nesta última parte de mim eu era passivo e constrangido, mais do que ativo e livre. E, contudo, o hábito que se impunha contra mim vinha de mim mesmo, pois fora voluntariamente que eu chegara onde não queria. E quem poderia protestar legitimamente, se um castigo justo segue o pecador Eu já não tinha aquela desculpa, com a qual persuadia-me de que, se ainda não desprezava o mundo para te servir, era porque não tinha visão clara da verdade, uma vez que agora já a conhecia de modo indiscutível. Mas, ainda apegado à terra, recusava-me a combater em tuas fileiras, e temia ver-me livre dos meus laços, quando devia temer estar por eles atado. Assim, sentia-me docemente oprimido pelo peso do mundo, como em um sonho, e os pensamentos com que meditava em ti eram semelhantes aos esforços dos que desejam despertar, mas, vencidos pela sonolência, voltam a dormir. Não há ninguém que queira dormir sempre, e segundo dita o bom senso, é melhor estar desperto que dormir. Contudo, às vezes retarda-se o despertar, quando o torpor torna os membros pesados, e, mesmo a contragosto, continua-se a dormir mesmo depois de chegada a hora de despertar. Assim eu estava certo que era melhor entregar-me a teu amor que ceder à minha paixão. O primeiro me agradava, me dominava; o segundo me encantava, me prendia.
Já não tinha o que responder quando me dizias: “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te há de iluminar”. E quando por todos os meios me mostrava a verdade do que dizias, e de que eu estava convencido, não tinha absolutamente nada para responder, senão umas palavras preguiçosas e sonolentas: Um momento. Depois. Um pouquinho mais… Mas este pouquinho não tinha fim, e este momento se ia prolongando. Em vão me deleitava em tua lei, segundo o homem interior, porque em meus membros outra lei combatia a lei de meu espírito, mantendo-me cativo sob a lei do pecado que estavas em meus membros. Com efeito, a lei do pecado é a violência do hábito, pelo qual a alma é arrastada e presa, mesmo contra sua vontade, merecidamente, porém, pois se deixa arrastar por vontade própria. Pobre de mim! Quem poderia libertar-me deste corpo de morte senão tua graça, por Cristo, nosso Senhor?
Das Confissões; Livro VIII; Cap V)(Séc. V)
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