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Sinais de uma igreja viva: o Espírito Santo habita em todos os filhos de Deus
NOVAS CRIATURAS :: DEBATES :: TEXTOS (EVANGELISTAS, PREGADORES, TEÓLOGOS, COMENTARISTAS BÍBLICOS, OUTROS)
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Sinais de uma igreja viva: o Espírito Santo habita em todos os filhos de Deus
SINAIS DE UMA IGREJA VIVA
Fragmentos do livro de John Stott
O que fazer com as diferenças?
Há uma tensão iniludível entre o que a igreja é e o que deve ser, entre o que a igreja já é e o que chegará a ser. Vivemos esta tensão em nossas congregações, tal como ocorria na igreja em Corinto. A situação é especialmente evidente na desunião entre cristãos. Sem dúvida há uma só igreja de Cristo, mas não mostramos e nem desfrutamos dessa unidade. A igreja é um povo santo de Deus, comprada pelo precioso sangue de Cristo e santificada pelo Espírito Santo. No entanto, a realidade ambígua da igreja é um desafio para que busquemos santidade e procuremos unidade em torno da essência do evangelho da cruz de Cristo. Quando há diferenças sobre temas teológicos sérios, o Novo Testamento não só permite como ordena a separação da igreja. Em sua carta, o apóstolo João expõe com claridade as doutrinas que não devem ser toleradas dentro da igreja: aquelas que negam a humanidade de Jesus Cristo ou negam o evangelho da graça gratuita por meio da cruz. Quem as sustenta merece uma maldição ou juízo de Deus. Com a mesma severidade se expressa Paulo na carta aos gálatas. As falsas doutrinas sobre a pessoa e a obra de Jesus Cristo de nenhuma maneira podem ser aceitas. Sobre estes assuntos deve aplicar-se a disciplina na igreja, até a excomunhão, porque são verdades centrais do evangelho.
Em compensação, o que devemos fazer sobre os assuntos que são secundários, mas causam divisão? Há muitos temas que nos dividem. Ainda que todos creiamos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, entramos em pleitos por muitos temas: a quantidade de água que se necessita para batizar alguém, a interpretação das profecias, porque cremos que certas profecias foram ou irão ser cumpridas. Até nos dividimos por questões culturais em relação à liturgia.
Todos cremos nos dons, cremos que a igreja é o corpo carismático de Cristo e cremos nos ministérios de todos os crentes. No entanto, discutimos sobre quais são os dons mais importantes e como são recebidos. Há inumeráveis polêmicas sobre assuntos secundários. Como diferenciamos o primário do secundário, o central e o marginal? Sugiro uma norma que pode ajudar quando queremos dialogar entre cristãos bíblicos, isto é, entre cristãos que consideram a Bíblia como máxima autoridade. Se estivermos igualmente dispostos a submeter-nos à autoridade das Escrituras e chegarmos a decisões diferentes sobre um tema, então devemos concluir que esse é um assunto secundário. Se as Escrituras não são claras para nos levar a uma conclusão única, significa que esse assunto não é central ao evangelho e que sobre esse tema devemos aceitar e respeitar nossas diferenças.
Estes são temas aos quais chamamos de adiáfora, isto é, assuntos que não são essenciais senão marginais. Um breve epigrama que vem do século XVII, e que se adjudica a Ruperto Meldinius, é de muita ajuda neste terreno. Traduzido do latim, expressa: No essencial, unidade. No que não é essencial, liberdade. Em todas as coisas, caridade. Sem dúvida a igreja pode ser uma comunidade mais harmoniosa e uma esfera mais feliz se nos esforçarmos por viver com este critério. Não deveríamos brigar por assuntos doutrinais secundários. Muito menos brigar por zelos, por ambição ou por questões de personalidade, como ocorreu na igreja em Corinto e ocorre hoje em muitos lugares. Pergunto-me que aconteceria com as divisões eclesiásticas se pudéssemos pensar sobre isto de maneira honesta. Muitas das nossas divisões respondem mais a diferenças culturais que teológicas. Outras, mais a temperamentos que a princípios doutrinários. E muitas são causadas por ambições pessoais mais do que por ambição em Cristo.
Examinemos nossas motivações. Tenhamos cuidado, ao pregar e batizar, de não estimular às pessoas a se sentirem mais leais a nós do que ao Senhor. Isto era o que havia horrorizado Paulo. Substituir o nome de Cristo pelo nosso próprio nome é contradizer o evangelho. O apóstolo culmina o capítulo 1 com um chamado à humildade. Pede que ninguém se jacte em outros seres humanos e muito menos em si mesmo: “O que se gloria, glorie-se no Senhor” (1:31). Esse é o essencial. Que nosso anelo seja estarmos cada vez mais centrados em Jesus Cristo, tanto em nossa doutrina como em nossa vida.
PODER NA FRAQUEZA
Porque a palavra da cruz é deveras loucura para os que perecem; mas para nós, que
somos salvos, é o poder de Deus. Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei a sabedoria e o entendimento dos entendidos. Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o questionador deste século? Visto como na sabedoria de Deus o mundo pela sua sabedoria não conheceu a Deus, aprouve a Deus salvar pela loucura da pregação os que crêem. Pois, enquanto os judeus pedem
sinal, e os gregos buscam sabedoria, nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos, mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte que
os homens. Ora, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos. Nem muitos os nobres que são chamados.Pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as coisas ignóbeis do mundo, e as desprezadas, e as que não são, para reduzir a nada as que são; para que nenhum mortal se glorie na presença de Deus. Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção; Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. E eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não fui com sublimidade de palavras ou de sabedoria. Porque nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado. E eu estive convosco em fraqueza, e em temor, e em grande tremor. A minha linguagem e a minha pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria, mas em demonstração do Espírito de poder; para que a vossa fé não se apoiasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus. (I Coríntios 1:18-2:5)
Nesta passagem o apóstolo Paulo menciona quatro vezes o poder (1:18-24; 2:4-5). Faz referência ao poder de Deus, da cruz, de Cristo e do Espírito Santo. A estas referências podemos agregar mais duas, tomadas de sua segunda carta aos Coríntios:
Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não da nossa parte. (II Coríntios 4:7) E ele (o Senhor) me disse: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. Por isso, de boa vontade antes me gloriarei nas minhas fraquezas, a fim de que repouse sobre mim o poder de Cristo. (II Coríntios 12:9)
Hoje vivemos em uma sociedade que adora o poder. Obviamente, a situação não é nada nova. A cobiça pelo poder tem caracterizado sempre o ser humano. Foi precisamente essa ambição que conduziu a queda de Adão e Eva, já que Satanás os tentou a desobedecer em troca de lhes dar poder. A sede de poder se expressa hoje em três ambições humanas muito amplas: a ambição desmedida pelo dinheiro, pela fama e pela influência. Encontramos esta cobiça pelo poder em todos os âmbitos: na política, na vida pública, nas relações familiares, nos negócios, na indústria e no exercício profissional. Lamentavelmente, também aparece na igreja: na luta pelo poder eclesiástico nos altos níveis, nas disputas denominacionais, no exercício da liderança em algumas igrejas locais e ainda nas organizações para eclesiásticas que pretendem converter-se em impérios mundiais. Se formos honestos, descobriremos que esta sede de poder chega ao púlpito. O púlpito é um lugar extremamente perigoso para qualquer filho de Adão. O poder é mais intoxicante que a bebida e mais vicioso que as drogas. Lorde Acton, um político inglês do século XIX, estava preocupado pelas lutas de poder no seio do governo que pretendia ser democrático, e ainda na igreja católica romana, à que ele pertencia. Em 1817, o Concilio Vaticano I declarou a infalibilidade do Papa. Lorde Acton manifestou seu desacordo, e suas palavras seguem vigentes: “O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”.
Também deveria nos preocupar a luta pelo poder que vemos entre os evangélicos, ainda se se trata do poder do Espírito Santo. Porque queremos receber poder? Buscamos realmente o poder para testificar, para viver em santidade, para viver com humildade? Ou reflete um desejo egoísta de exaltar nossa própria figura, ampliar nossa influência, impressionar e até manipular os outros? Até o evangelismo pode ser, em ocasiões, uma forma velada de imperialismo se promove mais o poder humano do que o Reino de Deus.
Nossa única preocupação deveria ser a majestade absoluta do Senhor Jesus Cristo e a honra de Seu Reino. Cristo mesmo nos adverte contra a ambição de poder. Ainda que no mundo usa-se a autoridade para controlar outros, Jesus disse a seus discípulos que não devia ser assim entre eles:
Mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser tornar-se grande,
será esse o que vos sirva; e qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos. Pois também o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos. (Marcos 10:42-45)
Jesus não se aferrou ao poder que legitimamente lhe pertencia. Se Ele renunciou ao poder, nós devemos fazer o mesmo. Esta perspectiva é totalmente oposta à do mundo. Este valoriza o poder. Deus, pelo contrário, insiste na humildade. Não há maneira de reconciliar estas duas perspectivas. São opostas e devemos escolher entre elas.
Provavelmente temos absorvido mais do que demos conta desta mentalidade secular. O filósofo Nietzsche construiu todo um sistema sobre a premissa do poder. Propunha um mundo dominado por governantes autoritários e opressores, no qual não havia lugar para seres débeis e enfermos. Seu ideal era o super-homem. Nietzsche adorava o poder e depreciava Jesus Cristo por sua fraqueza. Ao contrário, o modelo que Cristo
pôs diante de nós foi um menino. Por isso, o título deste capítulo nos apresenta diretamente o paradoxo do Evangelho: poder na fraqueza. Esse é o tema central de ambas as cartas de Paulo aos coríntios. Diferente do mundo, o poder de Deus se mostra por meio da fraqueza. A fragilidade humana é o terreno no qual se manifesta o poder divino. Na passagem de I Coríntios 1:17-2:5 encontramos três expressões da mesma realidade: o poder de Deus se mostra na fraqueza da mensagem, na fraqueza dos receptores desta mensagem, e na fraqueza daqueles que pregam a mensagem.
A fraqueza na mensagem: a cruz
Porque a palavra da cruz é deveras loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus. Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei a sabedoria e o entendimento dos entendidos. Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde está o questionador deste século? Visto como na sabedoria de Deus o mundo pela sua sabedoria não conheceu a Deus, aprouve a Deus salvar pela loucura da pregação os que crêem. Pois, enquanto os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria, nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos, mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens. (I Coríntios 1:18-25)
Paulo repete duas vezes o conceito de poder na fraqueza da mensagem: nos versículos 18-21 nos versículos 22-25. Ambos os parágrafos começam com uma referência à cruz e em ambos os casos o apóstolo assinala que a perspectiva humana da cruz é diferente da de Deus.
A loucura da pregação
O versículo 21 culmina no primeiro parágrafo com uma afirmação maravilhosa do Evangelho. Contém três importantes contrastes. Quem tomou a iniciativa de vir para salvar os pecadores? A resposta põe em evidência o primeiro contraste entre Deus e o mundo. A sabedoria do mundo falhou, mas Deus tomou a iniciativa e enviou Seu Filho para salvar aqueles que creram nEle. O resultado desta iniciativa de Deus nos mostra o segundo contraste. A salvação em Cristo não é só conhecimento acerca de Deus, tal como a sabedoria humana poderia chegar a oferecer. A salvação que Deus oferece é muito mais que simplesmente conhecer sobre Ele; é restaurar plenamente nossa relação com Ele. O terceiro contraste surge ao perguntar como se levou a cabo esta iniciativa. Deus o fez através da “loucura da pregação”. O que era impossível para a sabedoria do mundo, Deus se contentou em fazer através do kerygma, isto é, a mensagem do evangelho.
Loucura da cruz
O segundo parágrafo sobre a fraqueza da mensagem do Evangelho compreende os versículos 22-25. O apóstolo elabora outra vez o mesmo tema; Deus mostra a Sua sabedoria através da loucura de cruz. É na cruz, com toda a sua fraqueza, que Deus demonstra o Seu poder. Paulo faz referência à perspectiva que tanto os judeus como os gentios tinham da cruz.
Os primeiros pediam sinais e milagres. Esperavam um Messias político que expulsasse as legiões romanas para o mar Mediterrâneo e restaurasse a soberania do povo de Israel. Cada vez que um líder revolucionário dizia ser o Messias anunciado, os judeus lhe pediam sinais de poder que dessem credibilidade a suas pretensões. Por isso, uma e outra vez, faziam a Jesus essa pergunta: Quais são os sinais que tu fazes, para que te creiamos? Os judeus esperavam poder, não fraqueza. O Cristo crucificado era um tropeço para as expectativas judias, que imaginavam um líder poderoso cavalgando a frente de um potente exército. O que lhes oferecia o Evangelho? A patética figura do nazareno crucificado, um verdadeiro insulto ao orgulho nacional. Como podia o Messias de Deus terminar Sua vida crucificado, condenado por seus compatriotas e ainda debaixo da maldição de Deus mesmo? Para a perspectiva judaica isto era inaceitável.
Os gregos, por sua parte, esperavam demonstrações de sabedoria. Estavam treinados para escutar cada nova teoria e comprovar se era razoável para a lógica humana. Se para os judeus a cruz era expressão de fraqueza, para os gentios era de loucura. Para os gregos e romanos a crucificação era um método de execução pública muito humilhante. Estava reservada unicamente a criminosos; nenhum cidadão livre era crucificado. Redundava inconcebível dessa forma. Cícero, o grande orador romano, disse que a cruz não só era alheia ao corpo de um romano senão para sua mente, seus olhos e seus ouvidos. A cruz era algo tão horroroso que um cidadão não devia presenciar uma crucificação, nem falar sobre ela, nem ainda considerá-la em sua imaginação. Em contraste com a percepção da cruz que tinham tanto judeus como gentios, Deus fez dela o meio para mostrar a Sua sabedoria e poder: “Cristo é o poder e a sabedoria de Deus, porque o insensato de Deus é mais sábio do que os homens, e o fraco de Deus é mais forte do que os homens” (1:24-25).
Porque descartamos a cruz?
As palavras de Paulo são muito relevantes em nossos dias e têm especial aplicação no ministério da pregação. Ainda que não nos enfrentemos com judeus nem com gregos do primeiro século, existem modernos representantes de ambos os grupos. A cruz continua sendo pedra de tropeço para aqueles que, como Nietzsche, adoram o poder. A cruz é tropeço para todos os que confiam no poder humano e em sua própria capacidade para se salvar.
Como os judeus contemporâneos de Paulo, muitos de nós tratamos de nos amparar em nossa própria justiça. Muitas pessoas crêem que Deus está obrigado a aceitá-las por suas boas obras. Quem pensa assim tem uma percepção muito pequena de Deus, ou melhor, uma exagerada percepção de si mesmos. Ao contrário, aqueles que tiveram sequer uma visão parcial da majestade de Deus não podem cair em nenhum destes erros. Nunca ninguém pode se salvar a si mesmo e ninguém nunca o fará. Essa é a mensagem da cruz e por isso é pedra de tropeço para aqueles que têm uma exagerada percepção de seu próprio poder.
Assim como a cruz é tropeço para os que confiam em sua própria moralidade, é loucura para aqueles que confiam em sua própria capacidade intelectual. A. G. Ayer, um filósofo de Oxford particularmente famoso logo depois da Segunda Guerra Mundial, escreveu um livro intitulado Linguagem,verdade, e lógica. Assim se referiu com sarcasmo ao Cristianismo: De todas as religiões históricas, há muito boas razões para considerar o Cristianismo como a pior, porque descansa em duas doutrinas. A primeira é o Pecado Original, e a segunda, a expiação vicária de Cristo. Ambas são intelectualmente inconcebíveis e moralmente absurdas. Esta é a perspectiva do mundo sobre a cruz. Ao contrário, para aqueles que Deus chamou, a cruz não é fraqueza, mas poder. Não é loucura, mas sabedoria. A cruz é o poder de Deus porque por meio dela Deus tornou possível a salvação dos pecadores. Ele nos reconcilia consigo mesmo, nos livra da culpa de Seu justo juízo sobre os nossos pecados. Ele no liberta da escravidão de nosso egocentrismo e nos põe nos elevados caminhos da santidade. Tudo isso só é possível por meio da cruz.
A cruz é também sabedoria de Deus, porque por meio dela Deus não só resolve o nosso problema mas também, por assim dizer, Seu próprio dilema. Como poderia Deus expressar sua justiça e condenar os pecadores sem frustrar desta maneira Seu amor por eles? Como poderia expressar Seu amor e perdoar pecadores, sem pôr em dúvida Sua justiça? Em outras palavras, como poderia ser ao mesmo tempo um Deus justo e salvador? A resposta de Deus foi a cruz. Ali, em Seu Filho, tomou nosso lugar, levou nossos pecados e morreu nossa morte. Paulo desenvolve este tema extensamente em sua carta aos Romanos. Em 3:21-26 declara que, na cruz, Deus demonstrou Sua justiça. E em 5:8, 22 afirma também que ali Deus demonstrou seu amor. Sem dúvida a cruz é sabedoria de Deus, muito mais efetiva e poderosa que a sabedoria humana!
O ESPÍRITO E A PALAVRA
Na verdade, entre os perfeitos falamos sabedoria, não porém a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que estão sendo reduzidos a nada; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, que esteve oculta, a qual Deus preordenou antes dos séculos para nossa glória; a qual nenhum dos príncipes deste mundo compreendeu; porque se a tivessem compreendido, não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito: As coisas que olhos não viram, nem ouvidos ouviram, nem penetraram o coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam. Porque Deus no-las revelou pelo seu Espírito; pois o Espírito esquadrinha todas as coisas, mesmos as profundezas de Deus. Pois, qual dos homens entende as coisas do homem, senão o espírito do homem que nele está? Assim também as coisas de Deus, ninguém as compreendeu, senão o Espírito de Deus. Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, mas sim o Espírito que provém de Deus, a fim de compreendermos as coisas que nos foram dadas gratuitamente por Deus; as quais também falamos, não com palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas com palavras ensinadas pelo Espírito Santo, comparando coisas espirituais com espirituais. Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Mas o que é espiritual discerne bem tudo, enquanto ele por ninguém é discernido. Pois, quem jamais conheceu a mente do Senhor, para que possa instruílo? Mas nós temos a mente de Cristo. (I Coríntios 2:6-16)
As três personagens da trindade tiveram intervenção na composição das Escrituras. A Palavra veio de Deus, se enfoca em Cristo e foi inspirada pelo Espírito Santo. Podemos definir a Bíblia como o testemunho do Pai sobre o Filho, dado através do Espírito. Dedicaremos este capítulo para refletir sobre o papel do Espírito Santo na composição e interpretação das Sagradas Escrituras. Na seção inicial da sua carta, Paulo pôs em evidência o contraste entre a sabedoria do mundo e “a loucura do Evangelho”. A cruz de Cristo é pedra de tropeço para os judeus e loucura para os gentios. Nesta seção, reflete acerca da verdadeira sabedoria. Quiçá o faz como uma compensação no seu argumento, para que os coríntios não pensem que o apóstolo rechaça completamente a sabedoria e que prefere a loucura, a estupidez. Acaso rechaça o apóstolo o conhecimento e o lugar da mente? Logicamente que não.
A verdadeira sabedoria
Na verdade, entre os perfeitos falamos sabedoria, não porém, a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que estão sendo reduzidos a nada; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, que esteve oculta, a qual Deus preordenou
antes dos séculos para nossa glória; a qual nenhum dos príncipes deste mundo compreendeu; porque se a tivessem compreendido, não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito: As coisas que olhos não viram, nem ouvidos ouviram, nem penetraram o coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam. (I Coríntios 2:6-9)
A verdadeira sabedoria tem três características. Em primeiro lugar, é para os que são nascidos de novo em Cristo, e só para os maduros; não para os recém-nascidos na fé. É “comida sólida” que os imaturos ainda não estão em condições de assimilar. Em segundo lugar, a sabedoria verdadeira vem de Deus, não do mundo. E, por último, o propósito desta sabedoria é nossa glória. As boas novas não só anunciam a justificação por fé; incluem a certeza de que nosso destino final é compartilhar a glória de Deus. Os pensamentos de Deus são inalcançáveis para a mente humana. Como disse Isaías:
Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor. Porque, assim como o céu é mais alto do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos. (Isaías 55:8-9)
Esta sabedoria que vem de Deus só se pode conhecer se Ele a revelar. Por isso, nos próximos versículos, Paulo descreve a obra do Espírito Santo como agente da revelação divina. Sua função abarca quatro aspectos; o Espírito esquadrinha, revela, inspira e ilumina a verdade de Deus.
A inspiração verbal
Digamos primeiro o que não é a inspiração verbal. Não implica que cada palavra na Bíblia seja literalmente a verdade. Os autores bíblicos escreveram em diferentes estilos literários, cada um dos quais deve ser interpretado de acordo com suas próprias normas: a história como história, a poesia como poesia. O sentido das palavras pode ser, segundo o caso, literal ou figurativo. Por exemplo, os primeiros versículos do Salmo 119 descrevem o sol se levantando e se pondo. Não interpretamos literalmente a expressão, já que sabemos que não é o sol que se move senão a terra. Tão pouco interpretamos literalmente quando o salmista descreve o sol como um habitante de tendas, como uma noiva, ou como um atleta. Jesus usou com freqüência figuras de linguagem em Seus ensinamentos. No entanto, Ele mesmo advertiu contra o excessivo literalismo. No evangelho de João, por exemplo, tanto a Nicodemos como a mulher samaritana disse que era absurdo que interpretassem literalmente as figuras que havia usado do novo nascimento ou da água da vida.
A inspiração verbal tão pouco implica que o Espírito Santo fez um ditado verbal aos escritores bíblicos. Os mulçumanos crêem que Alá, por meio do anjo Gabriel, ditou o Corão a Maomé em árabe; ele escrevia só o que lhe ia sendo dito. Os cristãos não crêem que a Bíblia foi escrita desta maneira. Os autores bíblicos não foram simplesmente escribas que punham no papel o ditado divino. Ainda que o Espírito Santo se comunicasse através deles, eles mantinham o controle de suas capacidades e expressavam sua personalidade peculiar.
Por isso encontramos na Bíblia variedade de estilos literários e ainda diferentes ênfases teológicas. Amós é o profeta da justiça de Deus; Oséias, o de Seu amor; Isaías de Sua soberania. O mesmo é certo no Novo Testamento: Paulo é o apóstolo da graça; Tiago, o das obras; Pedro, o da esperança e João, o do amor.
Muitas seções da Bíblia são narrativas históricas. Estes escritos não foram ditados pelo Espírito Santo; Moisés, Samuel, Esdras, Neemias e os evangelistas do novo Testamento realizaram investigações históricas. Lucas o disse explicitamente no prefácio que fez do Evangelho. A inspiração divina e a investigação humana não são incompatíveis em absoluto.
Em terceiro lugar, a inspiração verbal não significa que cada frase da Bíblia é “palavra de Deus”. O Pacto de Lousana firmado em 1974 declara que a Bíblia não contém erros naquilo que afirma. Mas devemos agregar que nem tudo o que a Bíblia contém, o afirma.
Por exemplo, no livro de Jó se incluem extensos e tediosos discursos de seus amigos. Estes sustinham que Jó estava sendo castigado por seus pecados. No entanto, ao chegar no último capítulo do livro, Deus disse duas vezes a esses homens: Vocês não falaram de mim com retidão. Portanto, não temos liberdade para citar esses versos como palavra de Deus.
O livro de Jó, e tudo o que a Bíblia contém, é a Palavra de Deus. Mas esta deve ser entendida como um todo, e cada texto em seu contexto. Inspiração verbal significa que o Espírito Santo falou através de seus autores bíblicos e que estes devem ser entendidos de acordo com seu estilo literário, o sentido literal ou figurado das palavras, o contexto, e a intenção com que escreveram. As palavras são um privilégio do ser humano. Sem elas não conheceríamos nem poderíamos expressar o que há em nossa mente e coração. Pensamos em palavras, ainda quando não as pronunciamos.
Da mesma forma, o Espírito de Deus, que esquadrinha todas as coisas e conhece os pensamentos de Deus, revelou aos apóstolos seus achados, em palavras que Ele mesmo deu. Podemos resumir a idéia em uma epigrama: O Espírito falou suas palavras através das palavras dos autores bíblicos, de tal forma que as palavras dos autores bíblicos eram simultaneamente as palavras do Espírito Santo.
A Bíblia é a Palavra de Deus. No entanto, essa é somente parte da verdade e uma meia verdade pode ser muito perigosa. Não podemos afirmar a origem divina das Escrituras e negar a participação humana nela. Tão pouco podemos cometer o erro oposto. Pode-se traçar um paralelo nesta dupla autoria das Escrituras e as duas naturezas de Cristo. De fato, teólogos tanto católicos como protestantes, antigos e modernos, o fizeram. Dizer que Cristo é o Filho de Deus é verdade, mas é uma meia verdade perigosa se negamos Sua humanidade. A heresia oposta é considerar Jesus só como homem, o que não é uma verdade completa. Da mesma forma, devemos manter em harmonia a dupla autoria das Escrituras. Deus falou através dos autores humanos.
Ler a Bíblia com um espírito humilde e receptivo
Permitamos a Deus derrubar as nossas defesas, para que a Palavra nos desafie e transforme. Tenhamos a atitude do salmista: “Abre os meus olhos e verei as maravilhas da tua lei”. (Salmo 119:18). Se lermos a Bíblia com um conceito prévio do que queremos encontrar, Deus não se comunicará. O Espírito Santo pode nos dar discernimento espiritual quando lemos as Escrituras, mas só quando deixamos de lado nossos pré-juízos. O Espírito Santo habita em todos os filhos de Deus. Ele é quem ilumina a verdade bíblica para que a possamos conhecer e viver segundo ela.Se aceitarmos isto e cumprirmos com as normas mencionadas, haverá muito mais acordo entre nós.
Mordomos da revelação
Que os homens nos considerem, pois, como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, além disso, o que se requer nos despenseiros é que cada um seja encontrado fiel. Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por qualquer tribunal humano; nem eu tampouco a mim mesmo me julgo. Porque, embora em nada me sinta culpado, nem por isso sou justificado; pois quem me julga é o Senhor. Portanto nada julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual não só trará à luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá de Deus o seu louvor. (I Coríntios 4:1-5)
Os ministérios de Deus não ficaram ocultos, reservados somente às pessoas eleitas. Seus ministérios são segredos proclamados à humanidade para que possamos conhecer a Deus e viver em relacionamento com Ele. Deus se deu a conhecer, acima de tudo, em Jesus Cristo. As verdades sobre Jesus Cristo, Sua pessoa e Sua obra, só podem ser conhecidas através da revelação do Espírito. Os apóstolos foram os primeiros mordomos da mensagem, porquanto receberam a revelação para que conhecessem os mistérios de Deus. Depois deles, também os pastores são mordomos da revelação, porque Deus lhes confiou o ensinamento das Escrituras.
De acordo com o Novo Testamento, a primeira responsabilidade do ministro é ensinar o povo de Deus; quer dizer, alimentar o rebanho. Em I Timóteo 3:2-3, o apóstolo Paulo dá uma lista de requisitos para o ministro. Enumera qualidades morais muito importantes e, na mesma lista, inclui o que poderíamos chamar de uma “aptidão profissional”: o pastor deve ser apto a ensinar, a nutrir as ovelhas.
É interessante observar, no campo, que os pastores não alimentam as ovelhas, salvo estejam doentes. Sua tarefa, na realidade, é conduzi-las até os pastos, onde as ovelhas se alimentam por si só. Assim deve fazer o pastor na igreja: guiar os crentes à Palavra, para que se alimentem dela. Os pastores ensinam o que lhes foi dado, quer dizer, a mensagem bíblica. Exige-se dos ministros que sejam mordomos ou administradores fiéis daquilo que lhes foi confiado. É fácil se transformar em um mordomo infiel da mensagem, e é triste que existam muitos deles na igreja contemporânea. Alguns descuidam do estudo da Palavra de Deus ou a lêem de maneira ocasional e superficial. Outros não conseguem vincular o texto bíblico ao mundo atual, e outros manipulam o texto para que diga o que eles querem que diga. Há pastores que selecionam das Escrituras só o que gostam. Todos estes são exemplos de infidelidade.
As congregações vivem, crescem e florescem pela Palavra de Deus. Sem ela, adoecem e morrem. Por isso é tão importante que o ministro ordenado tenha hábitos disciplinados de estudo e que investigue tanto o mundo antigo como o atual, para que seu ensinamento seja completo e nutritivo. Imaginemos uma planície cortada por um abismo profundo. Um lado da planície representa o mundo bíblico e o outro o mundo contemporâneo. Entre o mundo bíblico e o mundo atual, temos um profundo “cânion de 2.000 anos”, dois milênios de mudanças culturais. Apliquemos este diagrama à tarefa de pregação. Nós os evangélicos vivemos do lado da planície que representa o mundo bíblico. Somos homens e mulheres que cremos na Bíblia, a amamos e a lemos. Não nos sentimos muito a vontade no lado que representa o mundo atual e até nos sentimos ameaçados por ele. Nem nos ocorreria pregar outra coisa que não fosse o texto bíblico. Mas pode acontecer que a mensagem nunca “aterrisse” do outro lado do abismo. É bíblica, mas está enraizada na realidade contemporânea. Esta é uma debilidade característica dos pregadores evangélicos. Os liberais cometem o erro oposto. Se sentem cômodos na cultura moderna, mas perderam a essência da revelação bíblica. Sua mensagem é aceita pelo mundo, mas não é bíblica.
Esta é uma das tragédias da igreja atual: os evangélicos são bíblicos mas não contemporâneos, e os liberais são contemporâneos mas não bíblicos. Poucos são os pregadores e mestres que constroem pontes para unir os dois mundos: o bíblico e o contemporâneo. Mas este é o desafio que temos. A única maneira de sermos bons mordomos da revelação de Deus é relacionar a Palavra com o mundo, e para isso devemos estudar e compreender os dois lados deste “abismo”.
Pessoalmente, estou muito agradecido a Martin Lloyd Jones, que me apresentou há mais de trinta anos um pequeno calendário de leituras bíblicas, que havia preparado um clérigo em 1842, para sua consagração na Escócia, com o propósito de que lesse a Bíblia todo ano: o Antigo Testamento uma vez, e o Novo duas. Ainda que se requeira ler quatro capítulos por dia, o método é de muito benefício. Não se começa lendo Gênesis, para seguir em forma contínua, mas se começa simultaneamente nos quatro grandes inícios da Bíblia: Gênesis 1, Esdras1, Mateus 1 e Atos 1. Estes são quatro grandes nascimentos: Gênesis relata o nascimento do universo e Esdras o renascimento da nação após o cativeiro babilônico. Mateus 1, o nascimento de Cristo; e Atos 1, o nascimento da igreja. Minha própria prática é ler três capítulos cada manhã; dois deles corridos, e o terceiro para meditar e estudar. Reservo o quarto para a tarde. Este enfoque ajuda a integrar a mensagem global das Escrituras. Minha recomendação é que procuremos, com este ou qualquer sistema, ler a Bíblia completa todo ano. Por sua vez, precisamos relacionar a Bíblia com a realidade atual.
Faz uns trinta anos, comecei um grupo de leitura em Londres, convidando uns quinze jovens profissionais, homens e mulheres, que estavam comprometidos com a Palavra e desejavam aplicá-la em seu âmbito cultural. Este grupo de leitura tem se mantido; reunimos-nos somente de quatro a seis vezes por ano, em cada reunião decidimos qual livro vamos ler antes do próximo encontro. Escolhemos livros populares, que estão produzindo impacto no pensamento moderno; às vezes escolhemos um filme. Quando nos reunimos, cada membro do grupo dispõe só de um minuto para definir qual o principal assunto que, pelo seu entendimento, o autor está enfocando.
Dedicamos umas duas horas para refletir e discutir sobre esses temas, e durante a última meia hora, nos fazemos a seguinte pergunta: O que diz o Evangelho às pessoas que pensam desta forma e vive nesta realidade? Estes encontros me têm ajudado muitíssimo a entrar no mundo moderno e estender uma ponte a partir da Bíblia até os problemas atuais. Reuniões deste tipo, com profissionais ou estudantes, membros de nossa igreja ou amigos em geral, são um espaço fecundo e desafiante para construir pontes entre a revelação de Deus e o mundo contemporâneo.
Fragmentos do livro de John Stott
O que fazer com as diferenças?
Há uma tensão iniludível entre o que a igreja é e o que deve ser, entre o que a igreja já é e o que chegará a ser. Vivemos esta tensão em nossas congregações, tal como ocorria na igreja em Corinto. A situação é especialmente evidente na desunião entre cristãos. Sem dúvida há uma só igreja de Cristo, mas não mostramos e nem desfrutamos dessa unidade. A igreja é um povo santo de Deus, comprada pelo precioso sangue de Cristo e santificada pelo Espírito Santo. No entanto, a realidade ambígua da igreja é um desafio para que busquemos santidade e procuremos unidade em torno da essência do evangelho da cruz de Cristo. Quando há diferenças sobre temas teológicos sérios, o Novo Testamento não só permite como ordena a separação da igreja. Em sua carta, o apóstolo João expõe com claridade as doutrinas que não devem ser toleradas dentro da igreja: aquelas que negam a humanidade de Jesus Cristo ou negam o evangelho da graça gratuita por meio da cruz. Quem as sustenta merece uma maldição ou juízo de Deus. Com a mesma severidade se expressa Paulo na carta aos gálatas. As falsas doutrinas sobre a pessoa e a obra de Jesus Cristo de nenhuma maneira podem ser aceitas. Sobre estes assuntos deve aplicar-se a disciplina na igreja, até a excomunhão, porque são verdades centrais do evangelho.
Em compensação, o que devemos fazer sobre os assuntos que são secundários, mas causam divisão? Há muitos temas que nos dividem. Ainda que todos creiamos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, entramos em pleitos por muitos temas: a quantidade de água que se necessita para batizar alguém, a interpretação das profecias, porque cremos que certas profecias foram ou irão ser cumpridas. Até nos dividimos por questões culturais em relação à liturgia.
Todos cremos nos dons, cremos que a igreja é o corpo carismático de Cristo e cremos nos ministérios de todos os crentes. No entanto, discutimos sobre quais são os dons mais importantes e como são recebidos. Há inumeráveis polêmicas sobre assuntos secundários. Como diferenciamos o primário do secundário, o central e o marginal? Sugiro uma norma que pode ajudar quando queremos dialogar entre cristãos bíblicos, isto é, entre cristãos que consideram a Bíblia como máxima autoridade. Se estivermos igualmente dispostos a submeter-nos à autoridade das Escrituras e chegarmos a decisões diferentes sobre um tema, então devemos concluir que esse é um assunto secundário. Se as Escrituras não são claras para nos levar a uma conclusão única, significa que esse assunto não é central ao evangelho e que sobre esse tema devemos aceitar e respeitar nossas diferenças.
Estes são temas aos quais chamamos de adiáfora, isto é, assuntos que não são essenciais senão marginais. Um breve epigrama que vem do século XVII, e que se adjudica a Ruperto Meldinius, é de muita ajuda neste terreno. Traduzido do latim, expressa: No essencial, unidade. No que não é essencial, liberdade. Em todas as coisas, caridade. Sem dúvida a igreja pode ser uma comunidade mais harmoniosa e uma esfera mais feliz se nos esforçarmos por viver com este critério. Não deveríamos brigar por assuntos doutrinais secundários. Muito menos brigar por zelos, por ambição ou por questões de personalidade, como ocorreu na igreja em Corinto e ocorre hoje em muitos lugares. Pergunto-me que aconteceria com as divisões eclesiásticas se pudéssemos pensar sobre isto de maneira honesta. Muitas das nossas divisões respondem mais a diferenças culturais que teológicas. Outras, mais a temperamentos que a princípios doutrinários. E muitas são causadas por ambições pessoais mais do que por ambição em Cristo.
Examinemos nossas motivações. Tenhamos cuidado, ao pregar e batizar, de não estimular às pessoas a se sentirem mais leais a nós do que ao Senhor. Isto era o que havia horrorizado Paulo. Substituir o nome de Cristo pelo nosso próprio nome é contradizer o evangelho. O apóstolo culmina o capítulo 1 com um chamado à humildade. Pede que ninguém se jacte em outros seres humanos e muito menos em si mesmo: “O que se gloria, glorie-se no Senhor” (1:31). Esse é o essencial. Que nosso anelo seja estarmos cada vez mais centrados em Jesus Cristo, tanto em nossa doutrina como em nossa vida.
PODER NA FRAQUEZA
Porque a palavra da cruz é deveras loucura para os que perecem; mas para nós, que
somos salvos, é o poder de Deus. Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei a sabedoria e o entendimento dos entendidos. Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o questionador deste século? Visto como na sabedoria de Deus o mundo pela sua sabedoria não conheceu a Deus, aprouve a Deus salvar pela loucura da pregação os que crêem. Pois, enquanto os judeus pedem
sinal, e os gregos buscam sabedoria, nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos, mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte que
os homens. Ora, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos. Nem muitos os nobres que são chamados.Pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as coisas ignóbeis do mundo, e as desprezadas, e as que não são, para reduzir a nada as que são; para que nenhum mortal se glorie na presença de Deus. Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção; Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. E eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não fui com sublimidade de palavras ou de sabedoria. Porque nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado. E eu estive convosco em fraqueza, e em temor, e em grande tremor. A minha linguagem e a minha pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria, mas em demonstração do Espírito de poder; para que a vossa fé não se apoiasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus. (I Coríntios 1:18-2:5)
Nesta passagem o apóstolo Paulo menciona quatro vezes o poder (1:18-24; 2:4-5). Faz referência ao poder de Deus, da cruz, de Cristo e do Espírito Santo. A estas referências podemos agregar mais duas, tomadas de sua segunda carta aos Coríntios:
Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não da nossa parte. (II Coríntios 4:7) E ele (o Senhor) me disse: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. Por isso, de boa vontade antes me gloriarei nas minhas fraquezas, a fim de que repouse sobre mim o poder de Cristo. (II Coríntios 12:9)
Hoje vivemos em uma sociedade que adora o poder. Obviamente, a situação não é nada nova. A cobiça pelo poder tem caracterizado sempre o ser humano. Foi precisamente essa ambição que conduziu a queda de Adão e Eva, já que Satanás os tentou a desobedecer em troca de lhes dar poder. A sede de poder se expressa hoje em três ambições humanas muito amplas: a ambição desmedida pelo dinheiro, pela fama e pela influência. Encontramos esta cobiça pelo poder em todos os âmbitos: na política, na vida pública, nas relações familiares, nos negócios, na indústria e no exercício profissional. Lamentavelmente, também aparece na igreja: na luta pelo poder eclesiástico nos altos níveis, nas disputas denominacionais, no exercício da liderança em algumas igrejas locais e ainda nas organizações para eclesiásticas que pretendem converter-se em impérios mundiais. Se formos honestos, descobriremos que esta sede de poder chega ao púlpito. O púlpito é um lugar extremamente perigoso para qualquer filho de Adão. O poder é mais intoxicante que a bebida e mais vicioso que as drogas. Lorde Acton, um político inglês do século XIX, estava preocupado pelas lutas de poder no seio do governo que pretendia ser democrático, e ainda na igreja católica romana, à que ele pertencia. Em 1817, o Concilio Vaticano I declarou a infalibilidade do Papa. Lorde Acton manifestou seu desacordo, e suas palavras seguem vigentes: “O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”.
Também deveria nos preocupar a luta pelo poder que vemos entre os evangélicos, ainda se se trata do poder do Espírito Santo. Porque queremos receber poder? Buscamos realmente o poder para testificar, para viver em santidade, para viver com humildade? Ou reflete um desejo egoísta de exaltar nossa própria figura, ampliar nossa influência, impressionar e até manipular os outros? Até o evangelismo pode ser, em ocasiões, uma forma velada de imperialismo se promove mais o poder humano do que o Reino de Deus.
Nossa única preocupação deveria ser a majestade absoluta do Senhor Jesus Cristo e a honra de Seu Reino. Cristo mesmo nos adverte contra a ambição de poder. Ainda que no mundo usa-se a autoridade para controlar outros, Jesus disse a seus discípulos que não devia ser assim entre eles:
Mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser tornar-se grande,
será esse o que vos sirva; e qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos. Pois também o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos. (Marcos 10:42-45)
Jesus não se aferrou ao poder que legitimamente lhe pertencia. Se Ele renunciou ao poder, nós devemos fazer o mesmo. Esta perspectiva é totalmente oposta à do mundo. Este valoriza o poder. Deus, pelo contrário, insiste na humildade. Não há maneira de reconciliar estas duas perspectivas. São opostas e devemos escolher entre elas.
Provavelmente temos absorvido mais do que demos conta desta mentalidade secular. O filósofo Nietzsche construiu todo um sistema sobre a premissa do poder. Propunha um mundo dominado por governantes autoritários e opressores, no qual não havia lugar para seres débeis e enfermos. Seu ideal era o super-homem. Nietzsche adorava o poder e depreciava Jesus Cristo por sua fraqueza. Ao contrário, o modelo que Cristo
pôs diante de nós foi um menino. Por isso, o título deste capítulo nos apresenta diretamente o paradoxo do Evangelho: poder na fraqueza. Esse é o tema central de ambas as cartas de Paulo aos coríntios. Diferente do mundo, o poder de Deus se mostra por meio da fraqueza. A fragilidade humana é o terreno no qual se manifesta o poder divino. Na passagem de I Coríntios 1:17-2:5 encontramos três expressões da mesma realidade: o poder de Deus se mostra na fraqueza da mensagem, na fraqueza dos receptores desta mensagem, e na fraqueza daqueles que pregam a mensagem.
A fraqueza na mensagem: a cruz
Porque a palavra da cruz é deveras loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus. Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei a sabedoria e o entendimento dos entendidos. Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde está o questionador deste século? Visto como na sabedoria de Deus o mundo pela sua sabedoria não conheceu a Deus, aprouve a Deus salvar pela loucura da pregação os que crêem. Pois, enquanto os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria, nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos, mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens. (I Coríntios 1:18-25)
Paulo repete duas vezes o conceito de poder na fraqueza da mensagem: nos versículos 18-21 nos versículos 22-25. Ambos os parágrafos começam com uma referência à cruz e em ambos os casos o apóstolo assinala que a perspectiva humana da cruz é diferente da de Deus.
A loucura da pregação
O versículo 21 culmina no primeiro parágrafo com uma afirmação maravilhosa do Evangelho. Contém três importantes contrastes. Quem tomou a iniciativa de vir para salvar os pecadores? A resposta põe em evidência o primeiro contraste entre Deus e o mundo. A sabedoria do mundo falhou, mas Deus tomou a iniciativa e enviou Seu Filho para salvar aqueles que creram nEle. O resultado desta iniciativa de Deus nos mostra o segundo contraste. A salvação em Cristo não é só conhecimento acerca de Deus, tal como a sabedoria humana poderia chegar a oferecer. A salvação que Deus oferece é muito mais que simplesmente conhecer sobre Ele; é restaurar plenamente nossa relação com Ele. O terceiro contraste surge ao perguntar como se levou a cabo esta iniciativa. Deus o fez através da “loucura da pregação”. O que era impossível para a sabedoria do mundo, Deus se contentou em fazer através do kerygma, isto é, a mensagem do evangelho.
Loucura da cruz
O segundo parágrafo sobre a fraqueza da mensagem do Evangelho compreende os versículos 22-25. O apóstolo elabora outra vez o mesmo tema; Deus mostra a Sua sabedoria através da loucura de cruz. É na cruz, com toda a sua fraqueza, que Deus demonstra o Seu poder. Paulo faz referência à perspectiva que tanto os judeus como os gentios tinham da cruz.
Os primeiros pediam sinais e milagres. Esperavam um Messias político que expulsasse as legiões romanas para o mar Mediterrâneo e restaurasse a soberania do povo de Israel. Cada vez que um líder revolucionário dizia ser o Messias anunciado, os judeus lhe pediam sinais de poder que dessem credibilidade a suas pretensões. Por isso, uma e outra vez, faziam a Jesus essa pergunta: Quais são os sinais que tu fazes, para que te creiamos? Os judeus esperavam poder, não fraqueza. O Cristo crucificado era um tropeço para as expectativas judias, que imaginavam um líder poderoso cavalgando a frente de um potente exército. O que lhes oferecia o Evangelho? A patética figura do nazareno crucificado, um verdadeiro insulto ao orgulho nacional. Como podia o Messias de Deus terminar Sua vida crucificado, condenado por seus compatriotas e ainda debaixo da maldição de Deus mesmo? Para a perspectiva judaica isto era inaceitável.
Os gregos, por sua parte, esperavam demonstrações de sabedoria. Estavam treinados para escutar cada nova teoria e comprovar se era razoável para a lógica humana. Se para os judeus a cruz era expressão de fraqueza, para os gentios era de loucura. Para os gregos e romanos a crucificação era um método de execução pública muito humilhante. Estava reservada unicamente a criminosos; nenhum cidadão livre era crucificado. Redundava inconcebível dessa forma. Cícero, o grande orador romano, disse que a cruz não só era alheia ao corpo de um romano senão para sua mente, seus olhos e seus ouvidos. A cruz era algo tão horroroso que um cidadão não devia presenciar uma crucificação, nem falar sobre ela, nem ainda considerá-la em sua imaginação. Em contraste com a percepção da cruz que tinham tanto judeus como gentios, Deus fez dela o meio para mostrar a Sua sabedoria e poder: “Cristo é o poder e a sabedoria de Deus, porque o insensato de Deus é mais sábio do que os homens, e o fraco de Deus é mais forte do que os homens” (1:24-25).
Porque descartamos a cruz?
As palavras de Paulo são muito relevantes em nossos dias e têm especial aplicação no ministério da pregação. Ainda que não nos enfrentemos com judeus nem com gregos do primeiro século, existem modernos representantes de ambos os grupos. A cruz continua sendo pedra de tropeço para aqueles que, como Nietzsche, adoram o poder. A cruz é tropeço para todos os que confiam no poder humano e em sua própria capacidade para se salvar.
Como os judeus contemporâneos de Paulo, muitos de nós tratamos de nos amparar em nossa própria justiça. Muitas pessoas crêem que Deus está obrigado a aceitá-las por suas boas obras. Quem pensa assim tem uma percepção muito pequena de Deus, ou melhor, uma exagerada percepção de si mesmos. Ao contrário, aqueles que tiveram sequer uma visão parcial da majestade de Deus não podem cair em nenhum destes erros. Nunca ninguém pode se salvar a si mesmo e ninguém nunca o fará. Essa é a mensagem da cruz e por isso é pedra de tropeço para aqueles que têm uma exagerada percepção de seu próprio poder.
Assim como a cruz é tropeço para os que confiam em sua própria moralidade, é loucura para aqueles que confiam em sua própria capacidade intelectual. A. G. Ayer, um filósofo de Oxford particularmente famoso logo depois da Segunda Guerra Mundial, escreveu um livro intitulado Linguagem,verdade, e lógica. Assim se referiu com sarcasmo ao Cristianismo: De todas as religiões históricas, há muito boas razões para considerar o Cristianismo como a pior, porque descansa em duas doutrinas. A primeira é o Pecado Original, e a segunda, a expiação vicária de Cristo. Ambas são intelectualmente inconcebíveis e moralmente absurdas. Esta é a perspectiva do mundo sobre a cruz. Ao contrário, para aqueles que Deus chamou, a cruz não é fraqueza, mas poder. Não é loucura, mas sabedoria. A cruz é o poder de Deus porque por meio dela Deus tornou possível a salvação dos pecadores. Ele nos reconcilia consigo mesmo, nos livra da culpa de Seu justo juízo sobre os nossos pecados. Ele no liberta da escravidão de nosso egocentrismo e nos põe nos elevados caminhos da santidade. Tudo isso só é possível por meio da cruz.
A cruz é também sabedoria de Deus, porque por meio dela Deus não só resolve o nosso problema mas também, por assim dizer, Seu próprio dilema. Como poderia Deus expressar sua justiça e condenar os pecadores sem frustrar desta maneira Seu amor por eles? Como poderia expressar Seu amor e perdoar pecadores, sem pôr em dúvida Sua justiça? Em outras palavras, como poderia ser ao mesmo tempo um Deus justo e salvador? A resposta de Deus foi a cruz. Ali, em Seu Filho, tomou nosso lugar, levou nossos pecados e morreu nossa morte. Paulo desenvolve este tema extensamente em sua carta aos Romanos. Em 3:21-26 declara que, na cruz, Deus demonstrou Sua justiça. E em 5:8, 22 afirma também que ali Deus demonstrou seu amor. Sem dúvida a cruz é sabedoria de Deus, muito mais efetiva e poderosa que a sabedoria humana!
O ESPÍRITO E A PALAVRA
Na verdade, entre os perfeitos falamos sabedoria, não porém a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que estão sendo reduzidos a nada; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, que esteve oculta, a qual Deus preordenou antes dos séculos para nossa glória; a qual nenhum dos príncipes deste mundo compreendeu; porque se a tivessem compreendido, não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito: As coisas que olhos não viram, nem ouvidos ouviram, nem penetraram o coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam. Porque Deus no-las revelou pelo seu Espírito; pois o Espírito esquadrinha todas as coisas, mesmos as profundezas de Deus. Pois, qual dos homens entende as coisas do homem, senão o espírito do homem que nele está? Assim também as coisas de Deus, ninguém as compreendeu, senão o Espírito de Deus. Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, mas sim o Espírito que provém de Deus, a fim de compreendermos as coisas que nos foram dadas gratuitamente por Deus; as quais também falamos, não com palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas com palavras ensinadas pelo Espírito Santo, comparando coisas espirituais com espirituais. Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Mas o que é espiritual discerne bem tudo, enquanto ele por ninguém é discernido. Pois, quem jamais conheceu a mente do Senhor, para que possa instruílo? Mas nós temos a mente de Cristo. (I Coríntios 2:6-16)
As três personagens da trindade tiveram intervenção na composição das Escrituras. A Palavra veio de Deus, se enfoca em Cristo e foi inspirada pelo Espírito Santo. Podemos definir a Bíblia como o testemunho do Pai sobre o Filho, dado através do Espírito. Dedicaremos este capítulo para refletir sobre o papel do Espírito Santo na composição e interpretação das Sagradas Escrituras. Na seção inicial da sua carta, Paulo pôs em evidência o contraste entre a sabedoria do mundo e “a loucura do Evangelho”. A cruz de Cristo é pedra de tropeço para os judeus e loucura para os gentios. Nesta seção, reflete acerca da verdadeira sabedoria. Quiçá o faz como uma compensação no seu argumento, para que os coríntios não pensem que o apóstolo rechaça completamente a sabedoria e que prefere a loucura, a estupidez. Acaso rechaça o apóstolo o conhecimento e o lugar da mente? Logicamente que não.
A verdadeira sabedoria
Na verdade, entre os perfeitos falamos sabedoria, não porém, a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que estão sendo reduzidos a nada; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, que esteve oculta, a qual Deus preordenou
antes dos séculos para nossa glória; a qual nenhum dos príncipes deste mundo compreendeu; porque se a tivessem compreendido, não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito: As coisas que olhos não viram, nem ouvidos ouviram, nem penetraram o coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam. (I Coríntios 2:6-9)
A verdadeira sabedoria tem três características. Em primeiro lugar, é para os que são nascidos de novo em Cristo, e só para os maduros; não para os recém-nascidos na fé. É “comida sólida” que os imaturos ainda não estão em condições de assimilar. Em segundo lugar, a sabedoria verdadeira vem de Deus, não do mundo. E, por último, o propósito desta sabedoria é nossa glória. As boas novas não só anunciam a justificação por fé; incluem a certeza de que nosso destino final é compartilhar a glória de Deus. Os pensamentos de Deus são inalcançáveis para a mente humana. Como disse Isaías:
Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor. Porque, assim como o céu é mais alto do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos. (Isaías 55:8-9)
Esta sabedoria que vem de Deus só se pode conhecer se Ele a revelar. Por isso, nos próximos versículos, Paulo descreve a obra do Espírito Santo como agente da revelação divina. Sua função abarca quatro aspectos; o Espírito esquadrinha, revela, inspira e ilumina a verdade de Deus.
A inspiração verbal
Digamos primeiro o que não é a inspiração verbal. Não implica que cada palavra na Bíblia seja literalmente a verdade. Os autores bíblicos escreveram em diferentes estilos literários, cada um dos quais deve ser interpretado de acordo com suas próprias normas: a história como história, a poesia como poesia. O sentido das palavras pode ser, segundo o caso, literal ou figurativo. Por exemplo, os primeiros versículos do Salmo 119 descrevem o sol se levantando e se pondo. Não interpretamos literalmente a expressão, já que sabemos que não é o sol que se move senão a terra. Tão pouco interpretamos literalmente quando o salmista descreve o sol como um habitante de tendas, como uma noiva, ou como um atleta. Jesus usou com freqüência figuras de linguagem em Seus ensinamentos. No entanto, Ele mesmo advertiu contra o excessivo literalismo. No evangelho de João, por exemplo, tanto a Nicodemos como a mulher samaritana disse que era absurdo que interpretassem literalmente as figuras que havia usado do novo nascimento ou da água da vida.
A inspiração verbal tão pouco implica que o Espírito Santo fez um ditado verbal aos escritores bíblicos. Os mulçumanos crêem que Alá, por meio do anjo Gabriel, ditou o Corão a Maomé em árabe; ele escrevia só o que lhe ia sendo dito. Os cristãos não crêem que a Bíblia foi escrita desta maneira. Os autores bíblicos não foram simplesmente escribas que punham no papel o ditado divino. Ainda que o Espírito Santo se comunicasse através deles, eles mantinham o controle de suas capacidades e expressavam sua personalidade peculiar.
Por isso encontramos na Bíblia variedade de estilos literários e ainda diferentes ênfases teológicas. Amós é o profeta da justiça de Deus; Oséias, o de Seu amor; Isaías de Sua soberania. O mesmo é certo no Novo Testamento: Paulo é o apóstolo da graça; Tiago, o das obras; Pedro, o da esperança e João, o do amor.
Muitas seções da Bíblia são narrativas históricas. Estes escritos não foram ditados pelo Espírito Santo; Moisés, Samuel, Esdras, Neemias e os evangelistas do novo Testamento realizaram investigações históricas. Lucas o disse explicitamente no prefácio que fez do Evangelho. A inspiração divina e a investigação humana não são incompatíveis em absoluto.
Em terceiro lugar, a inspiração verbal não significa que cada frase da Bíblia é “palavra de Deus”. O Pacto de Lousana firmado em 1974 declara que a Bíblia não contém erros naquilo que afirma. Mas devemos agregar que nem tudo o que a Bíblia contém, o afirma.
Por exemplo, no livro de Jó se incluem extensos e tediosos discursos de seus amigos. Estes sustinham que Jó estava sendo castigado por seus pecados. No entanto, ao chegar no último capítulo do livro, Deus disse duas vezes a esses homens: Vocês não falaram de mim com retidão. Portanto, não temos liberdade para citar esses versos como palavra de Deus.
O livro de Jó, e tudo o que a Bíblia contém, é a Palavra de Deus. Mas esta deve ser entendida como um todo, e cada texto em seu contexto. Inspiração verbal significa que o Espírito Santo falou através de seus autores bíblicos e que estes devem ser entendidos de acordo com seu estilo literário, o sentido literal ou figurado das palavras, o contexto, e a intenção com que escreveram. As palavras são um privilégio do ser humano. Sem elas não conheceríamos nem poderíamos expressar o que há em nossa mente e coração. Pensamos em palavras, ainda quando não as pronunciamos.
Da mesma forma, o Espírito de Deus, que esquadrinha todas as coisas e conhece os pensamentos de Deus, revelou aos apóstolos seus achados, em palavras que Ele mesmo deu. Podemos resumir a idéia em uma epigrama: O Espírito falou suas palavras através das palavras dos autores bíblicos, de tal forma que as palavras dos autores bíblicos eram simultaneamente as palavras do Espírito Santo.
A Bíblia é a Palavra de Deus. No entanto, essa é somente parte da verdade e uma meia verdade pode ser muito perigosa. Não podemos afirmar a origem divina das Escrituras e negar a participação humana nela. Tão pouco podemos cometer o erro oposto. Pode-se traçar um paralelo nesta dupla autoria das Escrituras e as duas naturezas de Cristo. De fato, teólogos tanto católicos como protestantes, antigos e modernos, o fizeram. Dizer que Cristo é o Filho de Deus é verdade, mas é uma meia verdade perigosa se negamos Sua humanidade. A heresia oposta é considerar Jesus só como homem, o que não é uma verdade completa. Da mesma forma, devemos manter em harmonia a dupla autoria das Escrituras. Deus falou através dos autores humanos.
Ler a Bíblia com um espírito humilde e receptivo
Permitamos a Deus derrubar as nossas defesas, para que a Palavra nos desafie e transforme. Tenhamos a atitude do salmista: “Abre os meus olhos e verei as maravilhas da tua lei”. (Salmo 119:18). Se lermos a Bíblia com um conceito prévio do que queremos encontrar, Deus não se comunicará. O Espírito Santo pode nos dar discernimento espiritual quando lemos as Escrituras, mas só quando deixamos de lado nossos pré-juízos. O Espírito Santo habita em todos os filhos de Deus. Ele é quem ilumina a verdade bíblica para que a possamos conhecer e viver segundo ela.Se aceitarmos isto e cumprirmos com as normas mencionadas, haverá muito mais acordo entre nós.
Mordomos da revelação
Que os homens nos considerem, pois, como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, além disso, o que se requer nos despenseiros é que cada um seja encontrado fiel. Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por qualquer tribunal humano; nem eu tampouco a mim mesmo me julgo. Porque, embora em nada me sinta culpado, nem por isso sou justificado; pois quem me julga é o Senhor. Portanto nada julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual não só trará à luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá de Deus o seu louvor. (I Coríntios 4:1-5)
Os ministérios de Deus não ficaram ocultos, reservados somente às pessoas eleitas. Seus ministérios são segredos proclamados à humanidade para que possamos conhecer a Deus e viver em relacionamento com Ele. Deus se deu a conhecer, acima de tudo, em Jesus Cristo. As verdades sobre Jesus Cristo, Sua pessoa e Sua obra, só podem ser conhecidas através da revelação do Espírito. Os apóstolos foram os primeiros mordomos da mensagem, porquanto receberam a revelação para que conhecessem os mistérios de Deus. Depois deles, também os pastores são mordomos da revelação, porque Deus lhes confiou o ensinamento das Escrituras.
De acordo com o Novo Testamento, a primeira responsabilidade do ministro é ensinar o povo de Deus; quer dizer, alimentar o rebanho. Em I Timóteo 3:2-3, o apóstolo Paulo dá uma lista de requisitos para o ministro. Enumera qualidades morais muito importantes e, na mesma lista, inclui o que poderíamos chamar de uma “aptidão profissional”: o pastor deve ser apto a ensinar, a nutrir as ovelhas.
É interessante observar, no campo, que os pastores não alimentam as ovelhas, salvo estejam doentes. Sua tarefa, na realidade, é conduzi-las até os pastos, onde as ovelhas se alimentam por si só. Assim deve fazer o pastor na igreja: guiar os crentes à Palavra, para que se alimentem dela. Os pastores ensinam o que lhes foi dado, quer dizer, a mensagem bíblica. Exige-se dos ministros que sejam mordomos ou administradores fiéis daquilo que lhes foi confiado. É fácil se transformar em um mordomo infiel da mensagem, e é triste que existam muitos deles na igreja contemporânea. Alguns descuidam do estudo da Palavra de Deus ou a lêem de maneira ocasional e superficial. Outros não conseguem vincular o texto bíblico ao mundo atual, e outros manipulam o texto para que diga o que eles querem que diga. Há pastores que selecionam das Escrituras só o que gostam. Todos estes são exemplos de infidelidade.
As congregações vivem, crescem e florescem pela Palavra de Deus. Sem ela, adoecem e morrem. Por isso é tão importante que o ministro ordenado tenha hábitos disciplinados de estudo e que investigue tanto o mundo antigo como o atual, para que seu ensinamento seja completo e nutritivo. Imaginemos uma planície cortada por um abismo profundo. Um lado da planície representa o mundo bíblico e o outro o mundo contemporâneo. Entre o mundo bíblico e o mundo atual, temos um profundo “cânion de 2.000 anos”, dois milênios de mudanças culturais. Apliquemos este diagrama à tarefa de pregação. Nós os evangélicos vivemos do lado da planície que representa o mundo bíblico. Somos homens e mulheres que cremos na Bíblia, a amamos e a lemos. Não nos sentimos muito a vontade no lado que representa o mundo atual e até nos sentimos ameaçados por ele. Nem nos ocorreria pregar outra coisa que não fosse o texto bíblico. Mas pode acontecer que a mensagem nunca “aterrisse” do outro lado do abismo. É bíblica, mas está enraizada na realidade contemporânea. Esta é uma debilidade característica dos pregadores evangélicos. Os liberais cometem o erro oposto. Se sentem cômodos na cultura moderna, mas perderam a essência da revelação bíblica. Sua mensagem é aceita pelo mundo, mas não é bíblica.
Esta é uma das tragédias da igreja atual: os evangélicos são bíblicos mas não contemporâneos, e os liberais são contemporâneos mas não bíblicos. Poucos são os pregadores e mestres que constroem pontes para unir os dois mundos: o bíblico e o contemporâneo. Mas este é o desafio que temos. A única maneira de sermos bons mordomos da revelação de Deus é relacionar a Palavra com o mundo, e para isso devemos estudar e compreender os dois lados deste “abismo”.
Pessoalmente, estou muito agradecido a Martin Lloyd Jones, que me apresentou há mais de trinta anos um pequeno calendário de leituras bíblicas, que havia preparado um clérigo em 1842, para sua consagração na Escócia, com o propósito de que lesse a Bíblia todo ano: o Antigo Testamento uma vez, e o Novo duas. Ainda que se requeira ler quatro capítulos por dia, o método é de muito benefício. Não se começa lendo Gênesis, para seguir em forma contínua, mas se começa simultaneamente nos quatro grandes inícios da Bíblia: Gênesis 1, Esdras1, Mateus 1 e Atos 1. Estes são quatro grandes nascimentos: Gênesis relata o nascimento do universo e Esdras o renascimento da nação após o cativeiro babilônico. Mateus 1, o nascimento de Cristo; e Atos 1, o nascimento da igreja. Minha própria prática é ler três capítulos cada manhã; dois deles corridos, e o terceiro para meditar e estudar. Reservo o quarto para a tarde. Este enfoque ajuda a integrar a mensagem global das Escrituras. Minha recomendação é que procuremos, com este ou qualquer sistema, ler a Bíblia completa todo ano. Por sua vez, precisamos relacionar a Bíblia com a realidade atual.
Faz uns trinta anos, comecei um grupo de leitura em Londres, convidando uns quinze jovens profissionais, homens e mulheres, que estavam comprometidos com a Palavra e desejavam aplicá-la em seu âmbito cultural. Este grupo de leitura tem se mantido; reunimos-nos somente de quatro a seis vezes por ano, em cada reunião decidimos qual livro vamos ler antes do próximo encontro. Escolhemos livros populares, que estão produzindo impacto no pensamento moderno; às vezes escolhemos um filme. Quando nos reunimos, cada membro do grupo dispõe só de um minuto para definir qual o principal assunto que, pelo seu entendimento, o autor está enfocando.
Dedicamos umas duas horas para refletir e discutir sobre esses temas, e durante a última meia hora, nos fazemos a seguinte pergunta: O que diz o Evangelho às pessoas que pensam desta forma e vive nesta realidade? Estes encontros me têm ajudado muitíssimo a entrar no mundo moderno e estender uma ponte a partir da Bíblia até os problemas atuais. Reuniões deste tipo, com profissionais ou estudantes, membros de nossa igreja ou amigos em geral, são um espaço fecundo e desafiante para construir pontes entre a revelação de Deus e o mundo contemporâneo.
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